Wednesday 20 December 2006

Watch this guy...

perhaps the most mentally agile of young American actors The Village Voice

a dynamite performance in a unique, and uniquely troubling, role Variety

a mesmerizing performance, casual yet dominating, and one that shows the kind of deep understanding of character few actors manage Los Angeles Times

a major talent and one of the finest young actors around Hollywood Reporter

(an actor) who has his own slight addiction to the half-started, glance-away, half-smile, then-deliver-the-line style of acting Chicago Tribune

The low-key acting, rooted in naturalism, is reminiscent of Marlon Brando San Francisco Chronicle

Chama-se Ryan Gosling, 26 anos, origem canadiana, uns anos de tirocínio na televisão, um primeiro papel de relevo em 2001 (The Believer de Henry Bean, sobre um jovem judeu anti-semita que se tornou membro proeminente do Partido Nazi Americano), algumas hesitações, embora com escolhas judiciosas a denotar exigência (prosseguir na via do cinema estimulante e dos papéis complexos - o muito "lynchiano" Stay de Marc Forster, filme onde o descobri, ao lado de Ewan McGregor e Naomi Watts - ou ceder à tentação do papel de "jeune premier" - The Notebook de Nick Cassavetes, partilhando o cartaz com Gena Rowlands), até à explosão recente de Half Nelson, de Ryan Fleck, filme que o melhor crítico americano da actualidade, Jonathan Rosenbaum, qualifica de a triumph of affectionate and even passionate portraiture, sobre um professor de história do secundário, politicamente empenhado, dedicado ao trabalho e também viciado em crack, uma estudante de 13 anos que descobre o seu segredo e que estabelece uma ligação emocional com ele e um dealer local que se sente responsável pela protecção da jovem. Their story is unpredictable, beautifully acted, and revelatory in its moral quandaries. Gosling's character is the most believable protagonist in any American movie I've seen this year--an immature mess, but charismatic, multifaceted, and sincere, the sort we can't really dismiss without dismissing some part of ourselves, Rosenbaum dixit.

Tuesday 19 December 2006

Afinal sempre há filme de Natal

Do céu caiu uma estrela que nos trouxe música ao coração. Não é costume que um filme de Natal seja um filme de monstros, um filme de guerra, nem, verdade seja dita, um filme muito bom. El laberinto del fauno é tudo isso, e muito mais. É também um filme de fadas, um filme inteligente, maravilhoso, em suma. Acabei de o ver e, speechless, não me ocorre nada melhor do que transcrever estas linhas do Time Out:


To label Guillermo del Toro’s sublime new gothic fantasy 'Pan’s Labyrinth' ‘brutal’ and ‘bloody’ is surely prevaricating on behalf of a more hardcore horror audience at the expense of the plentiful nuance and honest-to-goodness drama of this lush fable. Of course, the picture does also unsheath a series of sucker-punch moments unlike anything seen in fantasy film for a good long while.
A simply told yet staggeringly layered tale of young Ofelia’s journey into the dark heart of the Spanish civil war under the auspices of one hell of a wicked stepfather, it’s not just the distressingly capricious landscape into which she retreats to find her true self which affects so deeply. There are more than a few utterly astonishing moments of the ‘beautiful, grotesque’ in both worlds, all as metaphorically apposite as anything else in the picture. But like the best filmmakers in the business, del Toro accomplishes his most effective non-fantasy sequences with little more than judicious cuts and sound. And how accomplished it is. This is simply the zenith of modern filmmaking by an artist at the very peak of his abilities. 'Pan's Labyrinth' is a small, contained and intimate ‘epic’, a brilliant companion piece to 'The Devil's Backbone' (and more importantly to 'Cronos') in its melding of horrors of the mind vs. horrors of real life and the place of myth and legend. With its awards-worthy cast, it's the exquisitely emotive fairy tale Shyamalan wishes he could make. One of the films of the decade.

Sunday 17 December 2006

Já abriu a época de caça...

Aceitam-se, portanto, palpites sobre quais os filmes que não vão ganhar o óscar

A fé perdida de Michaela Klingler

Desde há uns anos que se começa de novo a falar do cinema alemão. Se há renascimento (ainda estamos para ver), é menos estrondoso do que o que conheceu nos anos 60/70, e ainda não há nomes que se equiparem a Fassbinder, Herzog ou Wenders. Alguns êxitos mundiais (Goodbye Lenin) ou polémicas ruidosas (Der Untergang/A Queda) não chegam para definir uma tendência, mas, pouco a pouco, chegam-nos sinais de que há algo de novo que fala alemão. Não são obras-primas, não têm sucesso garantido (apesar de alguns prémios em Berlim, mas isso é jogar em casa), não formam nenhuma corrente, dada a sua diversidade formal e temática, mas mexem. Unterwegs de Jan Krüger, que passou quase despercebido em 2004, era um primeiro filme muito promissor. Em jeito de road movie, contava a história de um jovem estranho e perturbante que se insinua no seio de um casal e que os leva a embarcar em aventuras pouco claras e algo ameaçadoras. De feitura mais clássica, Sophie Scholl - Die letzten Tage de Marc Rothemund superava com êxito a aposta de contar os últimos dias (prisão, processo e execução) da vida da jovem opositora ao regime nazi, concentrando a trama no fascínio que se exercem mutuamente Sophie e o principal investigador do processo.

Requiem constitui o último sinal que me chega desta tranquila movida alemã. O realizador, Hans-Christian Schmid, já tinha dado que falar com o seu filme anterior, Lichter (que não vi). Em Requiem, conta a história (baseada em factos reais) de Michaela Klingler, uma jovem estudante de 21 anos, oriunda de uma família profundamente católica e que sofre de perturbações que podem ser epilepsia, esquizofrenia, ou mesmo possessão (o filme, apesar do tratamento realista, atento aos detalhes quotidianos, evitando reviravoltas dramáticas e nunca embelezando a crueza das imagens nem recorrendo a efeitos especiais, deixa as várias soluções em aberto). Apesar da saúde frágil, deixa a casa familiar (e a tensa relação com a mãe) para prosseguir os estudos na universidade, onde reata uma amizade de infância e arranja um namorado. A doença volta a manifestar-se e os delicados alicerces da sua nova vida vacilam. Psicologicamente abalada, apesar de se colocar sob a protecção de Santa Catarina, Michaela julga-se possuída por demónios, recusa o tratamento médico, submete-se a várias tentativas de exorcismo e acaba por sucumbir por exaustão e falta de cuidados. Um mérito, e não pequeno, do filme é abordar um tema como o do exorcismo pelo prisma do realismo (não podia estar mais longe do género do terror de outros exemplos conhecidos de casos de possessão como O Exorcista), dada a opção do autor por nunca abandonar a personagem, que está presente em todas as cenas, embora a filme de um ponto de vista exterior, supostamente "objectivo" (o que quer dizer que a vemos nas suas crises mas a câmara mantém uma certa distância pudica, a vemos a ter visões mas não vemos as suas visões nem ouvimos as vozes que ouve), descritivo, quase clínico.
Não sendo uma obra-prima, o filme é forte e comovente, no retrato que faz de uma jovem em busca de si própria, arcando com o peso de uma fé familiar demasiado envolvente, lutando por uma sexualidade desculpabilizada. E não seria o que é sem Sandra Hüller, jovem actriz de teatro no seu primeiro papel para o cinema, numa interpretação fenomenal, contida, mas capaz de recorrer a uma paleta de emoções invulgar. Não possuindo uma educação particularmente religiosa (ao contrário do realizador, que provém de um meio católico conservador), a actriz preparou-se não só tecnicamente (por exemplo, como rezar com um rosário na mão, como simular uma crise de epilepsia), mas também mergulhando em livros sobre a epilepsia e as psicoses e descrições de pessoas que conheceram Anneliese Michel (a personagem real sobre a qual se baseia o filme). E recorrendo à imaginação. E ao talento, que é muito. Entre muitos outros prémios, Sandra Hüller obteve um Urso de Prata no último Festival de Berlim.

Sunday 3 December 2006

Incandescente


Gostaria de ter o talento de escrever assim...

Está nas Lágrimas e Suspiros o plano mais estarrecedor de Liv Ullmann e talvez o mais belo plano da obra de Ingmar Bergman. É quando Maria (nome de Liv nesse filme) revive o seu passado com o médico que foi amante dela (Erland Josephson). Subitamente, sem sabermos se estamos nesse passado ou já no presente, Josephson leva-a diante de um espelho, à luz duma vela e descreve demoradamente as mudanças no rosto de Liv. E a câmara não a larga nem se mexe enquanto Josephson lhe diz que ela está muito bonita, mais bonita ainda do que quando se conheceram. Mas também mudada, muito mudada: “Olhas de lado com desconfiança. Costumavas olhar de frente. A tua boca tem uma expressão de descontentamento e de fome. Tens quatro rugas sobre as sobrancelhas. A linha que te ia do ouvido ao queixo já mal se vê. O teu nariz já não é tão arrebitado. E o teu sorriso mudou. Sorris, agora, com desdém, com tédio e impaciência”.
Josephson diz tudo isto (e como cito de cor, e não sei sueco, omito com certeza várias coisas) muito devagar, com voz neutra e implacável, em off. No plano está só Liv Ullmann, o rosto de Liv Ullmann, nada mais do que ele. Não protesta, não responde, não fala. Deixa-se ficar a ouvir essa voz, a receber essa luz, a contemplar essa imagem, inteiramente entregue a essa análise minuciosa, terrível e doce.
Nunca vi na minha vida uma actriz despir-se assim, ficar tão nua perante o olhar da câmara, oferecendo-lhe cada poro da pele, cada linha do rosto. E nunca um grande plano foi figura tão exacta, tão necessária, tão evidente. Diz-se que Griffith inventou o grande plano para Lillian Gish. Depois dele, quantos o usaram com exactas mulheres? Contam-se pelos dedos da mão. Mas, certamente, um deles foi Ingmar Bergman nesse plano fabuloso. E uma das raríssimas actrizes que se deixou inteiramente possuir por ele foi Liv Ullmann, nessa relação física (ou química) com a câmara, totalmente oferecida, totalmente fascinada.

Podemos procurar explicações biográficas. De todas as actrizes de Bergman, Liv foi a que ele mais amou, a mulher com quem viveu 5 anos (exactamente a esse período de tempo se refere o médico), a mãe da sua única filha. Lágrimas e Suspiros foi filmado no ano em que se separaram e se a seguir virmos Persona (o primeiro filme que fizeram juntos) todas as mudanças que Josephson descreve são exactas. Mas deve-se desconfiar do biografismo, sobretudo com Bergman. Quando Torstan Manns (no livro Bergman on Bergman) lhe refere, a propósito do Rosto, que houve quem dissesse que Max Von Sydow o representava a ele, Bergman, que Gunnar Björnstrand representava Harry Schein (director do Svenska Film Institut e marido de Ingrid Thulin) e que Ingrid Thulin representava Ingrid Thulin, Bergman respondeu: “Digo como Flaubert: Madame Bovary, c’est moi”.
Liv Ullmann, a máscara, só pode ser Ingmar Bergman.

Como máscara (Persona) surgiu em 66 no mundo de Bergman, chamada Elisabeth Vogler. Não dizia uma só palavra durante quase todo o filme e durante quase todo o filme a câmara enquadrava-a em grandes planos, ouvindo o incessante monólogo de Bibi Andersson que com ela acabava por se confundir nesse famoso plano vampírico. Quem era? Um actriz. Uma actriz que um dia se calara no palco, no meio de uma frase e nunca mais voltara a falar, quer no hospício, quer na ilha para onde a levava a enfermeira. E todo o filme Elisabeth Vogler era essa máscara, essa persona, do lado de lá do espelho, ou do lado de cá. Hipnotizada e hipnotizante. Socorro-me de David Thompson que tem o dom da síntese que eu não tenho: Ullmann’s poignant face, staring often straight into the camera, carries the burden of the artist who feels unable to participate in life. Her silence rejects all argument: but that face is a self-concious ingredient of art in what is perhaps the most concentrated movie examination of the faces. Ullmann persuades us that acting has left her not a person, but the changing effects of appearance (…) There is no suggestion of her acting in Persona, only the extraordinary indefinite emotion of a photographed face – one of the greatest images in world cinema.
Isso – that face, the extraordinary indefinite emotions of a photographed face – é o cinema. Mas não no sentido da “página branca” do último plano da Garbo na Queen Christina ou no sentido de qualquer efeito de Kulechov. Bergman não lhe pediu o vazio como Mamoulian pediu à Garbo, nem conseguiu essa cara por efeito de montagem. O que aconteceu foi uma total absorção da luz e da sombra, como antes só víramos em Marlene filmada por Sternberg. Com a capital diferença da evidência da actriz. Será por isso que outro dos pontos culminantes da arte dela (deles) se chama Face to Face?

Mas esta mulher falou. E falou de que maneira, na Sonata de Outono, esmagando pela palavra (aquela noite das duas!) a actriz da palavra que foi Ingrid Bergman. Nunca – que me lembre – duas actrizes tão geniais se enfretaram assim e o momento supremo da sua luta de morte (luta de mãe e filha) é expresso no momento em que Liv Ullmann se decide a falar. E uma noite inteira falou por tudo e todos quanto se haviam calado.
E aquele grito (preferem uivo?) que soltou na noite em que Erland Josephson a abandonou nas Cenas da Vida Conjugal, quando descobre que toda a gente – menos ela –sabia que o marido tinha outra mulher? E a sua ânsia de ser tocada, de amor físico, nas Lágrimas e Suspiros, em que precisamente não é capaz de tocar no único corpo que lho pediu, no corpo da irmã morta? E o seu vaguear, na Hora do Lobo? E as noites dela com Max Von Sydow na ilha da Paixão?
Penso em todos esses filmes e o meu amor por esta mulher – a mais bela, a mais absoluta das mulheres de Bergman – não tem dimensão. (...)

Mulher, actriz, cinema – palavras tão simples, mistérios tão grandes: Liv Ullmann.
Mais simples, mais misterioso, é o amor. E só talvez ele explique que a “melhor mulher” só o tenha sido com Bergman. Longe dele – em tantos e tão penosos filmes – todo o mistério desapareceu. Ficou, quando muito, uma bonita imagem. Mais nada, mais nada. Borboleta da noite, viveu em torno de uma única luz. Fora dela, não existiu. Dentro dela, foi – de longe, de longe – a maior dos últimos vinte anos. (...)

Mas não tenho esse talento. Por isso aqui fica o texto, com uma vénia de homenagem. É de João Bénard da Costa e foi publicado em 1987 no catálogo do ciclo de cinema Actor/Actor.

Sunday 26 November 2006

Les Quatre Anglaises et le Continent

O continente sou eu nesta imaginária atribuição a mim próprio do papel de Jean-Pierre Léaud hesitando no amor por duas irmãs no belo filme de Truffaut Les deux anglaises et le continent. Na minha juventude, as inglesas da minha hesitação e devoção não foram duas, mas quatro.

E para o caso não é puramente inocente a invocação trufaldiana. É dele a célebre boutade de que cinema e inglês são dois termos incompatíveis: o cinema britânico sempre se caracterizou pela grandeza dos seus actores e pela pequenez dos seus filmes, curioso num país conhecido pela sua tradição teatral, mas cujo peso esmagador pode estar na origem da dificuldade do cinema em ganhar asas. Rios de tinta têm sido gastos em procurar possíveis explicações para o facto e uma delas, não pequena, será a força centrípta do cinema americano, que tem sistematicamente drenado os talentos que surgem nas ilhas, impedindo assim a continuidade da qualidade média de uma produção privada dos seus melhores artistas.

O viveiro de talentos que é o teatro britânico produz actores a cuja grandeza o cinema quase nunca tem sabido fazer o devido jus. Desafio quem quer que seja a apontar uma mão cheia de filmes ingleses de John Gielgud, Laurence Olivier ou Michael Redgrave que valha a pena voltar a ver sem ser pelas suas interpretações. Isto só para falar dos maiores, mais célebres e de carreira mais duradoura.

No início dos anos 60, a nouvelle vague francesa que limpou o pó do cinema clássico alastrou-se e renovou as cinematografias nacionais um pouco por toda a Europa e Mundo. O cinema inglês teve também a sua new wave, em que novos realizadores (vindos frequentemente do documentário, como Tony Richardson, John Schlesinger ou Lindsay Anderson), novos escritores ou dramaturgos convertidos em screenwriters (Alan Sillitoe, David Storey, Harold Pinter) e um punhado de novos actores (Albert Finney, Tom Courtenay, Richard Harris) procuraram abanar um cinema cristalizado nas adaptações teatrais, nas comédias tontas e na exploração estéril do classy british touch, trazendo-o do salão para a cozinha, aproximando-o das pessoas normais e dos temas quotidianos. A classe operária e a emergente swinging London entravam em cena. O cinema inglês parecia finalmente ter encontrado o seu lugar. O êxito do free cinema foi enorme (choveram óscares, prémios em Cannes) mas, ao contrário da nouvelle vague francesa, foi estéril e breve (no final da década pouco restava daquela lufada de ar fresco, que fôra mais aparente do que real – a verdade é que são poucos os filmes dessa época que sobreviveram bem, e grande parte dos realizadores foi absorvida pela máquina americana sem grande história ou desapareceu sem deixar rasto).

Ficaram os actores e as actrizes, enormes alguns, uma vez mais movendo-se com dificuldade em filmes que se comportam frequentemente como coletes de forças para os seus talentos. E é aqui que entram as minhas quatre anglaises. Que ficaram na minha memória muitas vezes apesar dos filmes que fizeram.

A primeira a entrar no meu panteão pessoal foi a última das quatro a chegar à celebridade internacional (sim, porque as minhas quatro magníficas inglesas são ou foram, para além de enormes actrizes, das mais célebres do mundo, que em conjunto somam 6 óscares, 19 nomeações, 2 prémios em Cannes e 2 em San Sebastian), onde reinou sem contestação durante algum tempo (primeira metade dos anos 70) como a maior actriz de língua inglesa, tendo-se depois progressivamente eclipsado, acabando por abandonar o cinema nos anos 80 para se dedicar exclusivamente à política: falo de Glenda Jackson. Já célebre no teatro quando chega ao cinema (pela mão de Peter Brook em 1967), esta filha de operários com uma total falta de glamour (na linha das actrizes lançadas uns anos antes pelo free cinema como Rachel Roberts ou Rita Tushimgham) triunfa internacionalmente em 1969 com Women in Love, adaptação relativamente fiel do romance de D.H. Lawrence por Ken Russell. Se o filme deu brado na época pela crueza dos sentimentos retratados e pelas cenas de nu masculino, hoje dificilmente sobrevive e Ken Russell confirmaria a seguir que é um dos piores realizadores do mundo. Mas Jackson continuou nos filmes seguintes a explorar a vulgaridade do seu físico, a voz quente e relativamente grave e um underplaying a roçar a invisibilidade. Faz para a televisão a Elisabeth I definitiva, com quem ainda hoje se medem as actrizes que ousam voltar a interpretar esse papel, repete o papel no cinema, em Mary, Queen of Scots, num ombro a ombro falhado com Vanessa Redgrave (já na época me esforcei imenso por gostar desse filme, que reunia as minhas actrizes favoritas, sem nenhum sucesso, dada a sua mediocridade) e é muito boa em Sunday, Bloody Sunday (John Schlesinger, 1971), de novo um filme ousado e “adulto”, em que partilha o amante Murray Head com o médico Peter Finch, mas que hoje, atenuado o escândalo do tema, se vê mais como uma curiosidade. Tem imenso êxito no registo de comédia no insípido e mediocríssimo A Touch of Class (segundo óscar), mas progressivamente a escolha de filmes e de realizadores fazem-na cair no esquecimento. O que eu gostava dela, daqueles olhos que se fechavam quando sorria tristemente, daquela boca entreaberta tão expressiva, daquele andar rígido, deselegante e tão normal! De cada vez que havia um novo filme da Glenda Jackson lá estava eu caído, preparado para gostar muito, e sempre, sempre desapontado. Mesmo quando trabalhou com bons realizadores (Losey, Altman), foi em filmes menoríssimos desses autores. A sua carreira, relativamente breve, foi um caso quase limite de misterioso desperdício de talento. Porque diabo nunca fez nenhum filme que não valha a pena ser visto sem ser por ela?
Se Glenda Jackson, apesar da fama que veio a adquirir no cinema, parece ter sido sempre uma outsider no meio teatral inglês, quer devido à proveniência social, quer devido à formação não convencional, já não é o caso das minha inglesas seguintes: Vanessa Redgrave e Maggie Smith fazem parte daquilo que se poderia designar por aristocracia do teatro inglês. Vanessa pertence a uma das mais famosas e importantes “dinastias” de actores; muito cedo pisa os palcos, interpretando desde Shakespeare a Tchekov (tive o privilégio de a ver em Londres no início dos anos 90 numa célebre encenação das Três Irmãs que a reuniu à irmã Lynn e a uma sobrinha, Jemma), sendo rapidamente tentada pelo cinema, onde sempre conciliou o mainstream melhor (The Bostonians de James Ivory, 1984) ou pior (Julia de Fred Zinnemann, 1977) e filmes de autor (mais raramente - um dos seus primeiros papéis relevantes foi no Blowup de Antonioni, 1966), sendo a sua presença sempre marcante. Aliás, a diferença entre a sua carreira e a de Glenda, para além da longevidade e de uma óbvia escolha menos desastrada de filmes, é que o talento de Vanessa não só sobrevive a filmes à partida menores, como os consegue frequentemente elevar a níveis impensados. Para mim, Vanessa foi durante muitos anos Isadora, uma interpretação extraordinária num biopic relativamente impessoal da célebre bailarina Isadora Duncan realizado em 1968 por Karel Reisz, um dos nomes do free cinema, com quem Vanessa havia já trabalhado (Morgan, 1966). A actriz, em estado de graça, apodera-se da personagem, que visivelmente lhe diz muito, tanto na sua abordagem inovadora da arte como na forma não convencional como encara o amor e o sexo, e galvaniza a energia de um filme que de outro modo não teria qualquer interesse. As suas interpretações de Nina em The Seagull (Tchekov filmado por Sidney Lumet, 1968) ou de Andrómaca em The Trojan Women (Eurípedes por Cacoyannis, 1971) valem os filmes e, tal como em Isadora, mais recentemente The Ballad of the Sad Café (Carson McCullers vista por Simon Callow, 1991) não seria o que é se não tivesse a inteligência e a genialidade de Vanessa.
A proximidade do tipo físico e da idade tornaram as carreiras de Vanessa Redgrave e de Maggie Smith quase intercambiáveis. As actrizes, aliás, tanto no teatro como no cinema, beneficiaram frequentemente de desistências mútuas para obterem papéis. Foi assim, por exemplo, que Maggie Smith, após uma carreira teatral que havia começado pela mão de Laurence Olivier no final dos anos 50, e alguns filmes onde é notável (The Honey Pot de Joseph L. Mankiewicz, 1967) mas onde pouca gente a viu, conseguiu o triunfo (óscar e tudo) na passagem para o cinema da peça (adaptada do romance de Muriel Spark) The Prime of Miss Jean Brodie (Ronald Neame, 1969), recusada por Vanessa (a viver o seu romance com Franco Nero) que a havia interpretado nos palcos. Igualmente esquálida e alta, mas menos bonita do que Vanessa, Maggie Smith adaptava-se não só aos papéis de solteirona frustrada ou dissoluta, como se viria a revelar igualmente à vontade em papéis cómicos (os pequenos de hoje divertem-se muito com ela no Harry Potter). Os americanos perceberam bem e foi divertidíssima no último grande Cukor (Travels with My Aunt, 1972). Apesar de ter trabalhado com Ivory (A Room with a View, 1985) ou com o Altman inglês (Gosford Park, 2001), é outro belo exemplo da pequenez do cinema britânico, que não sabe o que fazer com os grandes talentos.



Julie Christie é a última do quarteto e é um caso à parte. Lançada directamente pela vaga do free cinema (Billy Liar de John Schlesinger, 1963), foi a primeira a atingir o estrelato mundial (óscar em 1965 e Doctor Zhivago a ajudarem); nada ligada ao teatro, onde parece sentir-se desconfortável, tem tido uma carreira cinematográfica errática, com momentos muito altos, muitos ausentes (ocupada com Warren Beatty ou com a defesa dos animais), e alguns baixos; linda de morrer, dela diz Al Pacino que é the most poetic of all actresses. Foi a última das minhas quatre anglaises, chegou já laureada, mas curiosamente a sua reputação decorria mais do azul dos olhos e do sexy queixo protuberante do que das qualidades de representação. Foi assim que a vi em The Go-Between (Joseph Losey, 1971) onde não resistia à visão do corpo nu de Alan Bates, a rebentar de sensualidade por entre o apertado do corpete. Apesar de ter começado a sua carreira simbolizando a inglesa moderna, durante algum tempo quiseram pô-la a representar clássicos e, mais tarde, comédias, registos para os quais não estava visivelmente vocacionada. Três papéis, porém (que descobri ao longo dos anos, cronologicamente desordenados), revelaram-me quão grande actriz é, das minhas quatre anglaises talvez a mais puramente cinematográfica, a mais bela, a mais comovente, a mais poética: McCabe and Mrs. Miller (Robert Altman, 1971), em que dá uma inesperada dignidade a uma prostituta opiómana lutando para sobreviver numa cidadezinha do Oeste; Afterglow (Alan Rudolph, 1997), representando uma actriz de filmes B retirada, a quem um romance com um tipo mais novo vem iluminar de novo um sorriso há muito extinto; e, descoberta minha recente, Petulia (Richard Lester, 1968), um dos grandes filmes dos anos 60, em que faz um retrato comovente de uma mulher em luta para transcender a sua própria frivolidade. E quem a viu em Tétis, a mãe de Aquiles, numa breve aparição no recente Troy, sabe que Al Pacino e eu temos razão.

Saturday 25 November 2006

Friday 17 November 2006

Please, Sir, I want some more...

Quando eu era pequenino, não havia televisão onde eu vivia. Nos tempos livres da escola e das brincadeiras, lia-se e ia-se ao cinema. O que se lia, dependia muito das bibliotecas dos pais, cujo acesso era praticamente livre. Foi assim que pude passar directamente de uns livros do Pequenu (os suecos sempre foram bons em literatura infantil) para um livro de Knut Hamsun publicado em português com o título Pão e Amor que muito me impressionou, pois recriava de forma muito naturalista a vida desolada dos habitantes das montanhas invernais da Noruega. Teria eu uns dez anos, e só mais tarde regressei a essas paragens para me maravilhar com a viagem de Nils Holgersson através da Suécia, e muito depois com outras viagens guiado por Bergman ou Dreyer. O cinema já não era assim, porque havia a barreira dos "maiores de 12 anos", não havia televisão lá onde eu estava, nem vídeo, nem dvd, nem internet, imaginem. Quando era criança, via, portanto, filmes para crianças. Consumia de tudo, que não era muito: bonecos animados, filmes Disney, filmes da Marisol, e não sei muito bem que mais. Oliver!, o musical de Lionel Bart adaptado para o cinema por Carol Reed em 1968 foi o primeiro filme a sério que vi, tinha eu doze anos, aquele que durante muito tempo foi o maior de todos, o mais amado, e que abriu caminho a muitos outros, bem melhores (digo eu hoje); não era nem passou a ser nenhum clássico canonizado, nem uma série B de culto, nada disso: foi um filme coroado de sucesso e de óscares na época e hoje largamente (e justamente) desvalorizado, mas ao qual me liga muita ternura. A sua banda sonora foi o primeiro LP que tive (Consider yourself, Who will buy?, Oom pah pah, conhecia-as de trás para a frente), despoletou uma paixão literária por Charles Dickens, foi o primeiro filme que para mim teve um realizador e um cast, cujas carreiras segui durante algum tempo (os jovens actores não voltaram a fazer nada de especialmente interessante, mas Carol Reed, esse, levou-me ao Terceiro Homem, e este, por sua vez, a Orson Welles). Mas isso viria mais tarde.
Percebem agora por que situo o filme nas fundações da minha cinefilia? Todos os caminhos são bons...

Xiao cheng zhi chun (2002)

Após dez anos de ausência, o desejado regresso de Tian Zhuangzhuang ao cinema (depois de três anos de castigo e muitos outros de inactividade auto-imposta na sequência da proibição de The Blue Kite, 1993) foi ousado: um remake do clássico Xiao cheng zhi chun (Spring in a Small Town) de Fei Mu. A versão de 2002 aparenta algo de já visto no cinema chinês recente: uma história madura, subtil, imaculadamente realizada, de paixões mal sublimadas, oculta numa belíssima e elegante concha (lembremo-nos de Flowers of Shanghai de Hou Hsiao-hsien ou de In the Mood for Love de Wong Kar-wai).

Comparando ambas as versões, J. Hoberman (crítico do Village Voice), indo contra a corrente estabelecida que desvaloriza Springtime in a Small Town (2002) relativamente ao original, refere muito justamente que a versão de 48 é mais estranha, sombria, rígida, claustrofóbica e menos subtil do que o remake, que, de forma muito interessante, oferece a refracção de um drama contemporâneo rígido através do prisma de uma dupla nostalgia (o contemporâneo hoje → o contemporâneo da acção → o passado dos protagonistas). A atmosfera do primeiro filme estaria mais próxima de Strindberg, enquanto a do segundo evocaria Tchekhov.
A história é praticamente idêntica nos dois filmes. Tian socorre-se de um elenco mais jovem do que o de Fei e torna explícito que a impotência de Liyan é psicossomática. De resto, o remake preserva os planos longos e cuidadosamente concebidos, a atmosfera obsessivamente sombria e a tensão subtilmente crescente do original. Existem, contudo diferenças importantes. Tian abandona a característica mais inovadora da versão de Fei Mu – o recurso claramente moderno à voz off da frustrada heroína, uma corrente de consciência sussurrante que complica e dá um toque poético a tudo o que acontece. O filme de 2002 substitui essa modernidade subversiva por uma linguagem cinematográfica tradicional, quase clássica. Uma câmara extremamente móvel (que no original se limitava à cena da festa) dá a sensação de tudo ver. Tian converte um comentário radical sobre o colapso da China numa celebração nostálgica de um passado quase perfeito. Mas ao mesmo tempo, o novo filme pode ser lido como uma intervenção activa, urgente, num dilema político chinês contemporâneo. A um nível temático e simbólico, pode ser visto como o levantamento de um processo à ruptura violenta na cultura chinesa representada pelo fosso que a Libertação (1949) e a Revolução Cultural (1966-1976) abriram entre a cultura chinesa contemporânea e a tradição, e a proposta do respectivo tratamento. Springtime in a Small Town parece abraçar o projecto de reunir o presente ao passado ao estabelecer pontes, curar feridas. O filme é marcado por rupturas de vários tipos: o abismo na história original entre a China do pré e do pós-guerra, o vasto espaço emocional entre cada personagem antes e depois da guerra, as ruínas das muralhas da cidade, que só no fim do filme são vistas como permeáveis. E em termos autobiográficos (se não é ir longe demais), Springtime marca o fim da pausa na própria carreira interrompida de Tian Zhuangzhuang. O projecto cultural do filme praticamente obriga-o a abjurar os gestos de vanguarda do original, em favor de um estilo classicizante consciente que sublinha uma continuidade com a anterior cultura cinematográfica chinesa. O objectivo de Tian pode ser interpretado como retrospectivamente radical: mostrar como colmatar a ruptura entre o passado tradicional da China e o seu presente pós-revolucionário.

Tian Zhuangzhuang
Nasceu em Beijing em 1954. Tanto o pai, Tian Fang, como a mãe, Yu Lan, foram actores célebres do cinema chinês. Com 14 anos, corria já a "Revolução Cultural", Tian foi mandado "aprender com o povo", indo trabalhar para o campo na Província de Jilin (anteriormente parte da Manchúria). Em vez de aí passar o resto da vida, alistou-se no exército, estudando depois no departamento de fotografia da "unidade do filme agrícola", onde trabalhou numa série de filmes educativos e documentários.
Em 1978, obteve um lugar no departamento de realização da Academia do Filme de Beijing, a escola de cinema da China. Durante o curso, co-realizou o vídeo Women de jiao luo (Our Song), internacionalmente considerado como o sinal inicial do novo espírito do cinema chinês. Acabou o curso em 1982 – membro do grupo posteriormente conhecido por "quinta geração" – por serem a quinta "fornada" a concluir o curso no departamento de realização. O grupo incluía igualmente Chen Kaige (Yellow Earth), Wu Ziniu e Hu Mei. Embora dependente dos Estúdios de Beijing, Tian trabalhou por toda a China como freelance. Fez um filme para a TV, depois co-realizou outro para crianças, com dois colegas da "quinta geração". O seu primeiro filme a solo foi o melodrama Jiuyue (In September), feito para os Estúdios de Kunming. O segundo foi Lie chang zha sha (On the Hunting Ground, 1984), uma "ficção documental" feita para os Estúdios da Mongólia Interior. Dao ma zei (The Horse Thief, 1986) é o seu terceiro filme. Com o filme seguinte, Gushu Yiren (The Street Players, 1987) começaram os seus problemas com a censura, que viriam a culminar alguns anos depois, em 1993, com a controvérsia causada pelo filme Lan feng zheng (The Blue Kite), que foi interdito e valeu ao realizador uma proibição de trabalhar por três anos. Só em 2002 regressou ao cinema, em grande forma, assinando Springtime in a Small Town. Quatro anos depois está de volta, tendo apresentado The Go Master no festival de NY e no novel festival de Roma, com excelentes críticas.
(biografia adaptada do catálogo "Ciclo de Cinema Chinês" da Cinemateca Portuguesa)

Xiao cheng zhi chun (1948)

Num ano que parece já poder considerar-se como outro ano importante na produção de filmes chineses (como, recentemente, o ano 2000 - com a estreia de filmes tão variados e representativos das várias tendências e pólos de produção do mundo chinês como Yi Yi, In the Mood for Love, Platform ou Crouching Tiger, Hidden Dragon -, e antes 1998, ou 1996, ou 1993...), com um prémio em Veneza para Still Life de Jia Zhang-ke, a estreia prevista das superproduções The Banquet de Feng Xiaogang (vagamente inspirado no Hamlet) e Curse of the Golden Flower de Zhang Yimou (a encerrar a sua triologia de artes marciais) e a passagem em Cannes de Summer Palace de Lou Ye (e as autoridades chinesas a torcer o nariz), o novo filme de Tian Zhuangzhuang, um dos maiores realizadores chineses vivos, The Go Master, é um bom pretexto para revisitarmos o seu filme anterior, Springtime in a Small Town, de 2002, bem como o clássico de Fei Mu de 1948, de que é um remake (embora com o mesmo título original - Xiao cheng zhi chun -, o título internacional estabelece uma pequena diferença: Spring in a Small Town).


Produzido em 1948 (o ano anterior à chegada ao poder dos comunistas na China), Spring in a Small Town é um retrato lírico da intensa rivalidade psicológica entre dois amigos pelo amor de uma mulher. Dirigido por Fei Mu e baseado numa história de Li Tianji, o filme relata a rede de emoções criada entre quatro pessoas, transmitindo um intenso e perturbante erotismo. Dai Liyan (Shi Yu) e a mulher Zhou Yuwen (uma interpretação notável de Wei Wei) vivem na velha casa de família com a jovem Dai Xiu (Zhang Hongmei), irmã de Liyan, e a criada da família Lao Huang (Cui Chaoming). Devido ao estado de Liyan (tuberculoso, neurasténico, à beira do suicídio), o casal dorme em quartos separados. Yuwen, é uma esposa leal e devotada, mas já abandonou a ideia de ter filhos e leva uma vida entediante, ocupando o tempo a bordar ou a dar passeios solitários pelas ruínas das muralhas da cidade.

Quando Zhang Zhichen (Li Wei), amigo de infância de Liyan, agora médico, chega de Shanghai, trazendo consigo uma lufada de cosmopolitismo e um escape para antigas paixões e ressentimentos reprimidos, ficamos a saber que Yuwen havia sido sua namorada dez anos antes. A tensão torna-se cada vez mais evidente à medida que cada personagem se vê obrigada a ocultar a sua verdadeira natureza e os sentimentos são expressos unicamente através de olhares, gestos e silêncios. A chegada de Zhichen vem trazer uma chama de vida à atmosfera moribunda da casa e, pouco depois, a atmosfera torna-se mais ligeira, com passeios, canções e jogos. A relação entre Yuwen e Zhichen reacende-se pouco a pouco, tornando‑se aparente na festa de aniversário de Xiu, em que ambos bebem mais do que a conta. Após uma discussão com Zhichen, Yuwen corta-se com um vidro e a partir daí os acontecimentos precipitam-se, acabando por afectar a vida de todas as personagens.

Ao descrever os acontecimentos do ponto de vista de Yuwen e adicionando uma voz off poética, o filme aproxima-nos das personagens. A sensação de frustração e irritação é palpável, sublinhada pela brilhante ideia de Fei de utilizar fusões encadeando as cenas, mas a contra-corrente do desejo que renasce imprime uma grande sensualidade ao filme.

Esta obra única (frequentemente citada entre os melhores filmes chineses de sempre, mas raramente vista hoje – eu tive o privilégio de a ver no ciclo de cinema chinês organizado pela Cinemateca Portuguesa em 1987) reflecte e disseca a sensação de impotência que se apropriou de muitos chineses nos anos imediatamente a seguir à guerra.

Os comentadores comunistas criticaram a timidez ideológica de Fei, bem como o efeito narcótico do filme, não percebendo a dolorosa ironia do título nem como este filme capta de forma tão perfeita o momento em que foi feito.

Fei Mu (1906-1951)
Estreia-se como crítico de cinema (co-edita, como o seu amigo Zhu Shilin, a revista "Hollywood"). Começa a partir de 1933 uma carreira de realizador com Cheng shi zhi ye (City's Night), cuja vedeta é a bela Ruan Lingyu, que interpreta também o seu filme seguinte, Ren sheng (Life, 1934). Realiza em seguida Xiang xue hai (Sea of Perfumed Snow, 1934), de que assina também o argumento e Tianlun (Filial Piety, 1935), em colaboração com Luo Minyou. Em 1936, pouco antes da declaração de guerra, realiza um filme que ataca indirectamente os japoneses: Lang shan die xie ji (Blood in the Wolf Hill). Em 1937, realiza Zhan jing tang (Murder in the Oratory), uma ópera interpretada pelo célebre Zhou Xinfang, e Qian tai he hou tai (On Stage and Backstage), uma curta-metragem sobre a vida dos actores de ópera, que roda em simultâneo com o filme anterior e depois, ainda no mesmo ano, Du jin de cheng (Golden City) e Bei zhan chang jing zhong lu (Martyrs on the Northern Front), uma mescla de actualidades e ficção. Durante o período da "ilha órfã" (período da guerra sino-japonesa de 37 a 41, antes da ocupação total de Shanghai), escreve e realiza ainda quatro filmes: Kong Fuzi (Confucius, 1940), Shi jie er nu (Children of the World), em colaboração com os exilados alemães Jakob e Louise Fleck, Gu zhong guo zhi ge (The Song of Ancient China, 1941), uma selecção de oito extractos de óperas e, por fim, Hong xuan jiao (1941).
Quando os japoneses assumem o controlo dos estúdios de Shanghai em 1942, recusa colaborar. Em 1948 realiza o primeiro filme chinês a cores, Sheng si hen (Happiness Neither in Life Nor in Death), ópera de Beijing interpretada pelo grande actor Mei Lanfang e Xiao cheng zhi chun (Spring in a Small Town), a sua obra-prima. Em 1950 começa a rodar, em Hong Kong, Jiang hu er nu (Sons of the Earth, 1951), mas morre em Janeiro de 1951, sendo o filme terminado por Zhu Shilin.
(biografia adaptada do catálogo "Ciclo de Cinema Chinês" da Cinemateca Portuguesa)

Tuesday 14 November 2006


There was theatre (Griffith), poetry (Murnau), painting (Rossellini), dance (Eisenstein), music (Renoir). Henceforward there is cinema. And the cinema is Nicholas Ray.
Jean-Luc Godard

Monday 13 November 2006

El hombre que sabía demasiado


Com Nueve reinas (2000), o realizador argentino Fabián Bielinsky fez uma estreia auspiciosa, um pé no cinema comercial e outro no cinema de autor, demonstrando uma mestria à la Coen Brothers, menos o cinismo. El aura (2005) prossegue a via aberta com o primeiro filme, com mais segurança (a cena do sonhado assalto ao banco é excelente), mais depuração (recurso à elipse narrativa), menos fogo de artifício verbal (o diálogo é escasso), imagem mais trabalhada. Ricardo Darín tem o career role que há muito prometia e merecia, e não o deixa escapar. Ao segundo filme, Bielinsky despediu-se do cinema com uma obra-prima. Fabián Bielinsky morreu este Verão, em São Paulo, de um ataque cardíaco. Tinha 47 anos.

No princípio era...

Começar é que custa, já se sabe.

Escolher um título (em jeito juvenil - querido blog - ou dando-se ares - ars poetica?), seleccionar uma foto (do meu filme favorito? - ainda é cedo, do actor mais belo? - embaraço da escolha), escrever algo inteligível (umas linhas programáticas?, uma carta a mim próprio lançada ao mundo?) (e em que língua, when you live in the European limbo et on veut être entendu par le plus grand nombre?), tudo é mais difícil do que previsto.

Falar para as paredes mas desta vez com a sensação (e a secreta esperança) de que elas poderão não se limitar ao eco habitual tem algo de semelhante a uma entrega voluntária a um estupro secretamente desejado.

Mas, olha, está a andar! E já custa menos, e as paredes continuam a ecoar, que afinal o blog ainda é secreto.

E a primeira foto é Dans Paris, que foi onde começou a cinefilia, que era onde eu gostaria de estar e não estou, que é o filme de que mais gostei ultimamente e que, sem querer, diz mais deste cinéfilo invertebrado do que todas as palavras.

(à suivre)