Wednesday 27 February 2008

Desterro


Gosto de filmes russos. É uma fraqueza minha, um pequeno pecadilho, todos nós os temos, mais ou menos confessáveis, e este acho que nem para mim próprio ainda o tinha verbalizado. Tento controlá-lo, mas nem sempre com sucesso. Gosto de todo o tipo de filmes russos, dos mudos da era czarista (também os houve!) - Y. Bauer -, dos da utopia revolucionária (sejam eles vanguardistas - Eisenstein, Dovzhenko -, experimentais - Vertov - ou de feitura mais clássica - Barnet), das grandes epopeias históricas - Eisenstein de novo -, dos melodramas edificantes - Donskoi -, tenho até (e o que vou dizer é uma enormidade) uma certa complacência pelos filmes realistas socialistas mais ou menos ingénuos da era soviética. A abortada nova vaga russa dos anos 60 - Shepitko, Muratova -, o caso Tarkovski, o renascimento pós-soviético - Sokurov, a maravilhosa Kira Muratova novamente (e um dia voltarei para vos falar dela)... Não sei explicar por quê: é a musicalidade da língua, é o lado pictórico dos caracteres, é a estranheza da estepe, é a melancolia dos rostos, o excesso dos gestos, sei lá. Já estavam avisados, eu sou um cinéfilo invertebrado.


Vem isto a propósito de um recente filme russo, Изгнание (Izgnanie - The Banishment, que poderia dar em português O Banimento ou O Desterro), de Andrei Zvyagintsev. É o segundo filme deste realizador, que começou em 2003 com o belo Возвращение (Vozvrashcheniye - O Regresso), tendo surpreendido tudo e todos ao ganhar o Leão de Ouro do Festival de Veneza.

Como frequentemente me acontece, saí do filme rendido, esmagado e exaltado, mas sem conseguir explicar porquê. Apesar de ter sido seleccionado para o Festival de Cannes do ano passado (e de ter saído de lá com um prémio de interpretação para Konstantin Lavronenko), a crítica não tem sido meiga com Izgnanie. Acusam-no de excesso de referências estéticas, excesso de decorativismo, excesso de simbolismo, um certo pretenciosismo e alguma confusão narrativa. Enfim, tudo o que um filme não deve ser...

E, no entanto... discordo. Discordo e estou pronto a defendê-lo, mesmo apesar de, agora já a frio, lhe reconhecer alguns problemas, sobretudo relacionados com as elipses narrativas que, em certos casos, deixam portas demasiado abertas. De resto, o filme conta uma história velha do tamanho da humanidade, ou seja, o conflito no interior de uma família, a relação do Homem com o que não consegue apreender e a responsabilidade do indivíduo face aos seus actos.

Izgnanie baseia-se num romance esquecido do escritor americano de origem arménia William Saroyan, publicado em 1954, e conta a história de Alexandre, de Vera, sua mulher, e dos dois filhos, Kir e Eva, que se instalam na casa de infância de Alex, no campo. Mal instalados, Vera anuncia ao marido que está grávida, mas que o filho não é dele. Alexandre não sabe como reagir face a essa notícia inesperada e a partir daí o drama vai num crescendo. Propositadamente, não vou adiantar mais sobre a intriga; direi apenas que, surpreendentemente para um filme aparentemente tão contemplativo, as personagens (entre as quais Mark, o irmão de Alex, a ovelha tresmalhada da família) e os acontecimentos se sucedem.

A solenidade formal é mais aparente do que real. Se bem que Zvyagintsev convoque Tarkovski e outras referências cinéfilas (mais Antonioni do que Bergman, ao contrário do que se tem dito) para a composição e o encadeamento dos planos, e o ritmo lento do filme o pareça corroborar, Izgnanie vê-se quase como um thriller, atípico, é certo, mas do qual não estão arredados alguns dispositivos narrativos próprios do género, nem mesmo alguns artefactos (a arma, a carta-mistério). A trama deste filme aparentemente solene e hierático segue-se como a trama de um filme de mistério, se bem que com mais espaço para a intervenção do espectador - o que é também a sua principal deficiência, reconheço: não falo, atenção, de mais explicações ou mais psicologia, mas de mais consistência e mais espaço para compreendermos melhor as motivações de algumas personagens (Vera, a mulher, ou Mark, o irmão).

É claro que a beleza visual do filme é esmagadora, e só eu sei como sou particularmente sensível a este tipo de beleza. Não a beleza da paisagem bonitinha e bem compostinha, decorativa, mas a da paisagem como reflexo da alma, com tudo o que ela tem de paz, de secreto, de mistério, de feio, de inquietante, de busca (e não deixa de ser curioso que este filme tão russo, com esta paisagem tão russa, tenha sido filmado na Moldávia e... na Bélgica - afinal, aquilo que reconhecemos como tão particularmente russo é mais universal do que pensávamos).

O rigor da composição dos planos, o simbolismo das referências (são muitas as referências bíblicas, desde os nomes das personagens à leitura de uma passagem de uma epístola de S. Paulo, passando por um puzzle que reproduz a "Anunciação" de Leonardo Da Vinci ou pelo uso de um excerto do "Magnificat" de Bach; mas o que é a Bíblia se não uma história de famílias?), as citações cinéfilas (Tarkovski e o vento, Antonioni e a paisagem industrial desolada) ou pictóricas (Brueghel), tudo se conjuga para adensar o mistério e para nos dar pistas para a sua resolução.


Os actores são outro dos trunfos (e não dos menores) do cinema russo de que tanto gosto. Não nos esqueçamos que o teatro russo é uma das mais antigas e prestigiadas escolas de representação do mundo, que está na origem do famoso Actor's Studio americano. Os actores de Izgnanie são todos impressionantes de justeza, desde Konstantin Lavronenko (justamente premiado em Cannes) à extraordinária galeria de secundários. Actores com a capacidade de fazer passar emoções com o menor esforço aparente, despsicologizando ao máximo (poucas variações de tom, nenhum histrionismo), corporalizando ao máximo (não sei se me faço entender, mas as presenças físicas, neste filme todo de paisagens e de almas, são pujantes).


Não sei se Izgnanie é um grande filme, mas é certamente um filme que amo muito.

Thursday 21 February 2008

Se houvesse justiça...

... no próximo domingo, os Óscares seriam distribuídos pelos seguintes filmes:

No Country for Old Men de Joel e Ethan Coen

melhor filme

melhor realização

melhor actor secundário (Javier Bardem)

Eastern Promises de David Cronenberg

melhor actor (Viggo Mortensen)

Away from Her de Sarah Polley

melhor actriz (Julie Christie)

melhor argumento adaptado

I'm Not There de Todd Haynes

melhor actriz secundária (Cate Blanchet)

Ratatouille de Brad Bird e Jan Pinkava

melhor argumento original

melhor música (Michael Giacchino)

The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford de Andrew Dominik

melhor cinematografia (Roger Deakins)

The Bourne Ultimatum de Paul Greengrass

melhor montagem

melhor som

melhor montagem de som

There Will Be Blood de Paul Thomas Anderson

melhor direcção artística

Sweeney Todd: The Demon Barber of Fleet Street de Tim Burton

melhor guarda-roupa

12 de Nikita Mikhalkov

melhor filme em língua estrangeira

Persépolis de Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud

melhor filme de animação

Mas, a bem dizer, não me cheira, porque o melhor de todos não foi nem sequer nomeado para coisa nenhuma:

Paranoid Park de Gus Van Sant