Tuesday 20 February 2007

Infernal Affairs Vs. The Departed - IV

Mais importante do que as últimas alterações referidas, é a relativa à motivação do polícia “mau”. No fim de contas, toda a gente na polícia pensa que o tipo é um excelente polícia, incorruptível. Com a carreira de vento em popa, por que continua ele a passar informações ao chefe mafioso? Em Infernal Affairs, a sua motivação estava implícita no dever de lealdade (noção tão oriental e tão difícil de transplantar) para com a pessoa que o tinha tratado como um filho. À parte isso, não parecia ganhar muito mais.

Essa questão era aparentemente uma motivação frágil da personagem de Matt Damon no remake americano; The Departed tornou-a, portanto, mais complicada. Damon tinha sido um miúdo extremamente pobre. O mafioso não só tornou a sua infância mais confortável, inspirando assim a lealdade, como continuou a proporcionar-lhe benefícios. Vemos Damon a comprar um apartamento de luxo, e quando o agente imobiliário manifesta dúvidas sobre a sua capacidade financeira, ele afasta-as com um rápido “Tenho um co-signatário”. Obviamente, esta situação cria mais problemas do que os que resolve. A cobiça é uma motivação credível num jovem americano criado na pobreza, mas aquilo que a ajuda financeira do mafioso acrescenta em motivação, retira em credibilidade. Será possível que o agente imobiliário seja a única pessoa no mundo que repara que Damon comprou um apartamento completamente fora do alcance do salário de um polícia? Este não é o tipo de sinal exterior de riqueza que a polícia fiscal tanto procura? Não é esta compra, na realidade, um risco para Damon, passível de fazer ir pelos ares a sua missão? No fundo, a falha não reside neste pequeno pormenor, mas em toda a premissa, que é intrinsecamente autocontraditória.

Na vida real, por que razão se manteria o “maior polícia do mundo” leal a um chefe mafioso? A resposta seria “para ter acesso a um estilo de vida fora do alcance do salário de um polícia” e, no entanto, esse mesmo estilo de vida poderá traí-lo e comprometer o seu valor para o mafioso. Questão mais difícil do que parece. Outra possível resposta tem de ser descartada: que ele considerasse o mafioso como uma figura paterna. Se assim fosse, a proximidade dessa relação teria sido detectada na investigação do seu passado e das suas ligações feita pela polícia, uma vez que o mafioso teria sempre de ter tido o rapaz sob a sua asa paternal. Portanto, não podendo a motivação ser dinheiro nem lealdade, qual poderia ser? Nenhuma. Essa é que é a questão: toda a premissa é absurda.
É por tudo isto que, sendo Infernal Affairs uma discreta mas extremamente eficaz homenagem aos filmes de gangsters de Scorsese, como Mean Streets e Goodfellas, e simultaneamente um excelente policial que transcende as convenções do género, é um filme belo e complexo sobre a natureza do bem e do mal e a permeabilidade entre as duas noções. Ao contrário do que pensa muito boa crítica, não considero que The Departed tenha elevado um bom script às alturas de um grande filme de dimensão metafísica, mas que o reduziu ao menor denominador comum do espectador americano e americanizado. E fê-lo tão bem que os resultados estão à vista: êxito de bilheteira, chuva de prémios.

Infernal Affairs Vs. The Departed - III

The Departed acrescenta uma ligação bastante forçada entre as duas “toupeiras”: andam ambos a "comer" a mesma mulher, uma psiquiatra da polícia (Vera Farmiga). Suponho que não é difícil defender que essa ligação é, em si mesma, um elemento extremamente fraco, uma vez que junta mais uma coincidência improvável a um filme que já estava cheio delas, mas essa não é a minha questão. The Departed perdeu a situação interessante que era criada em Infernal Affairs pela namorada do polícia “mau” (Sammy Cheng). Esta é uma romancista que está a escrever um livro em que o herói lhe está a criar problemas. Essa personagem tem várias personalidades e ela não consegue descortinar se é “bom” ou “mau”. Dado que o polícia “mau” está exactamente na mesma situação, a escritora/namorada tem uma série de conversas com ele que são sobre a personagem de ficção, mas que, na realidade, são também sobre o amante. No início, só o polícia está consciente do duplo sentido implícito em todas essas conversas, mas a namorada vai progressivamente compreendendo mais, para seu horror. Este é mais um caso em que a versão americana substituiu a complexidade psicológica pela complicação da intriga.
Na versão chinesa do filme, é absolutamente claro desde a primeira cena que o chefe mafioso tem várias “toupeiras” nas forças policiais, e não apenas o tipo principal da história. Embora este facto nunca mais seja mencionado até quase ao final, altura em se torna essencial para o desfecho da trama, é dado no início do filme, e quando volta a ser mencionado, surge de forma clara e sem ambiguidades. O argumento de The Departed optou por ocultar a existência de outras “toupeiras” até ao momento em que é necessário introduzi-las. Ambas as soluções têm os seus defensores. Eu, pessoalmente, não gosto quando um desenvolvimento de uma intriga surge como um deus ex machina, quando uma personagem importante parece estar por ali adormecida a um canto e um elemento até lá insuspeito emerge de parte nenhuma para a fazer ter uma acção fundamental, sem que o espectador pudesse ter a menor suspeita dados os elementos previamente conhecidos. Gosto dos romances policiais em que o autor coloca todas as pistas na história de forma a que o leitor ou o espectador possa resolver o mistério por si só se for suficientemente esperto e estiver suficientemente atento. Mas admito que é defensável que a introdução de surpresas caídas do céu pode trazer alguma emoção e algum entretenimento adicional a certo tipo de histórias larger than life e operáticas, como é, sem dúvida, o caso.Alguns anos antes do tête-à-tête climáctico em Infernal Affairs, o polícia que pretende ser um mafioso encontra o mafioso que pretende ser um polícia numa situação completamente neutral: uma discussão sobre equipamento de alta fidelidade numa loja de electrónica. Nenhum faz ideia de quem é o outro, nem se reconhecem dos tempos da academia de polícia, onde foram colegas. Quando, anos depois, se reencontram, o polícia “mau”, que agora é o novo chefe do polícia “bom” após a morte do comandante, diz “Com que então, és tu”, e faz uma observação sobre equipamento de som. Era um elemento completamente irrelevante para a intriga, que atrasava a acção com uma discussão um pouco idiota sobre electrónica e música, e compreende-se perfeitamente porque foi cortado. Mas era também um toque poético, que se perdeu no filme americano.

(to be continued...)

Infernal Affairs Vs. The Departed - II

Em Infernal Affairs, o filme de Hong Kong do qual The Departed é um remake, o “mau” (o infiltrado da máfia na polícia) sai vencedor no final. Consegue matar todos os que sabem da sua existência, incluindo o próprio gangster. Existe, porém, uma importante subtileza psicológica nesta vitória. O seu triunfo não representa realmente uma vitória do mal sobre o bem, porque ele não tem escolha no futuro a não ser tornar-se o polícia “bom” que pretende ser. Sabemos isto por coisas que diz e faz, mas também porque é uma simples evidência. Já não há ninguém a quem informar, apesar de a namorada saber que ele tem vivido uma vida dupla. Com efeito, ele organizou as coisas com esse objectivo em mente, e matou o chefe mafioso só para pôr termo ao embuste. Sim, o “mau” obteve uma vitória absoluta, mas, ironicamente, é forçado a tornar-se “bom” para sempre.
Considero esta conclusão o melhor elemento do argumento de Infernal Affairs, mas Scorsese abandonou-o, presumivelmente porque os espectadores americanos teriam dificuldade em digerir uma ideia tão complexa. The Departed substituiu a ironia do “mau que ganha mas que forçosamente terá de tornar-se bom” pela simplicidade do “mau que é castigado no fim”.
Uma vez que o argumento é um puzzle extremamente complexo, essa alteração obrigou o screenwriter americano a proceder a várias outras alterações e juntar alguns elementos a outros de uma trama já labiríntica. Antes de tudo, exigia uma nova personagem. Em Infernal Affairs, o comandante da polícia da unidade especial à paisana era a única pessoa que conhecia a identidade do seu homem infiltrado na máfia, e o “mau”, tendo ficado responsável por essa unidade após a morte do comandante, apagou o ficheiro do polícia “bom”. Com a morte do comandante, o polícia infiltrado morto no final, e o seu ficheiro apagado, nada nem ninguém restava que pudesse impedir o completo triunfo do “mau”. A alteração de Scorsese requeria, portanto, outro polícia incorrupto que conhecesse e confiasse no agente infiltrado, para que o “mau” pudesse ter a merecida paga. Assim surgiu em The Departed o papel de Mark Wahlberg.
Era necessária outra alteração. No filme chinês, o polícia “mau” acaba por matar o próprio chefe mafioso, simplesmente porque decidiu tornar-se o que sempre tinha pretendido ser. Dado que Scorsese alterou o final, tinha de mudar um de outros dois elementos: a) ou o polícia “mau” matava o mafioso por outra razão, b) ou então não o matava. Julgo que esta última não parecia uma verdadeira opção, portanto era necessário criar uma razão para a traição. O que é que poderia ser? Bem, acaba por verificar-se que o próprio chefe mafioso é uma espécie de “toupeira”: Nicholson fornece informações ao FBI sobre várias questões importantes para a segurança do Estado. Quando o polícia “mau” descobre isto, receia que o mafioso esteja disposto a vender o que quer que seja para salvar a pele, mesmo a identidade do seu homem no departamento da polícia estadual de Massachusets. Dentro do contexto, faz algum sentido, é certo, mas acrescenta um novo elemento desnecessário a uma história que já era suficientemente complicada sem a entrada em cena do FBI, e sem a possibilidade de que mesmo o gansgster louco e assassino esteja a ser protegido por outra estrutura policial. Por outras palavras, o argumento de The Departed substituiu toda a complexidade psicológica do filme original por uma trama mais complicada, e tudo isso para eliminar um elemento que me parece ser a melhor parte do argumento original!
A única explicação é que estas alterações foram feitas porque Scorsese e o seu argumentista sentiram que os espectadores americanos não iriam aceitar o facto de o “mau” conseguir uma vitória total, nem o facto de que ele já não era “mau”, mas era sim o polícia “bom” que pretendera ser.
(to be continued...)