Sunday 3 December 2006

Incandescente


Gostaria de ter o talento de escrever assim...

Está nas Lágrimas e Suspiros o plano mais estarrecedor de Liv Ullmann e talvez o mais belo plano da obra de Ingmar Bergman. É quando Maria (nome de Liv nesse filme) revive o seu passado com o médico que foi amante dela (Erland Josephson). Subitamente, sem sabermos se estamos nesse passado ou já no presente, Josephson leva-a diante de um espelho, à luz duma vela e descreve demoradamente as mudanças no rosto de Liv. E a câmara não a larga nem se mexe enquanto Josephson lhe diz que ela está muito bonita, mais bonita ainda do que quando se conheceram. Mas também mudada, muito mudada: “Olhas de lado com desconfiança. Costumavas olhar de frente. A tua boca tem uma expressão de descontentamento e de fome. Tens quatro rugas sobre as sobrancelhas. A linha que te ia do ouvido ao queixo já mal se vê. O teu nariz já não é tão arrebitado. E o teu sorriso mudou. Sorris, agora, com desdém, com tédio e impaciência”.
Josephson diz tudo isto (e como cito de cor, e não sei sueco, omito com certeza várias coisas) muito devagar, com voz neutra e implacável, em off. No plano está só Liv Ullmann, o rosto de Liv Ullmann, nada mais do que ele. Não protesta, não responde, não fala. Deixa-se ficar a ouvir essa voz, a receber essa luz, a contemplar essa imagem, inteiramente entregue a essa análise minuciosa, terrível e doce.
Nunca vi na minha vida uma actriz despir-se assim, ficar tão nua perante o olhar da câmara, oferecendo-lhe cada poro da pele, cada linha do rosto. E nunca um grande plano foi figura tão exacta, tão necessária, tão evidente. Diz-se que Griffith inventou o grande plano para Lillian Gish. Depois dele, quantos o usaram com exactas mulheres? Contam-se pelos dedos da mão. Mas, certamente, um deles foi Ingmar Bergman nesse plano fabuloso. E uma das raríssimas actrizes que se deixou inteiramente possuir por ele foi Liv Ullmann, nessa relação física (ou química) com a câmara, totalmente oferecida, totalmente fascinada.

Podemos procurar explicações biográficas. De todas as actrizes de Bergman, Liv foi a que ele mais amou, a mulher com quem viveu 5 anos (exactamente a esse período de tempo se refere o médico), a mãe da sua única filha. Lágrimas e Suspiros foi filmado no ano em que se separaram e se a seguir virmos Persona (o primeiro filme que fizeram juntos) todas as mudanças que Josephson descreve são exactas. Mas deve-se desconfiar do biografismo, sobretudo com Bergman. Quando Torstan Manns (no livro Bergman on Bergman) lhe refere, a propósito do Rosto, que houve quem dissesse que Max Von Sydow o representava a ele, Bergman, que Gunnar Björnstrand representava Harry Schein (director do Svenska Film Institut e marido de Ingrid Thulin) e que Ingrid Thulin representava Ingrid Thulin, Bergman respondeu: “Digo como Flaubert: Madame Bovary, c’est moi”.
Liv Ullmann, a máscara, só pode ser Ingmar Bergman.

Como máscara (Persona) surgiu em 66 no mundo de Bergman, chamada Elisabeth Vogler. Não dizia uma só palavra durante quase todo o filme e durante quase todo o filme a câmara enquadrava-a em grandes planos, ouvindo o incessante monólogo de Bibi Andersson que com ela acabava por se confundir nesse famoso plano vampírico. Quem era? Um actriz. Uma actriz que um dia se calara no palco, no meio de uma frase e nunca mais voltara a falar, quer no hospício, quer na ilha para onde a levava a enfermeira. E todo o filme Elisabeth Vogler era essa máscara, essa persona, do lado de lá do espelho, ou do lado de cá. Hipnotizada e hipnotizante. Socorro-me de David Thompson que tem o dom da síntese que eu não tenho: Ullmann’s poignant face, staring often straight into the camera, carries the burden of the artist who feels unable to participate in life. Her silence rejects all argument: but that face is a self-concious ingredient of art in what is perhaps the most concentrated movie examination of the faces. Ullmann persuades us that acting has left her not a person, but the changing effects of appearance (…) There is no suggestion of her acting in Persona, only the extraordinary indefinite emotion of a photographed face – one of the greatest images in world cinema.
Isso – that face, the extraordinary indefinite emotions of a photographed face – é o cinema. Mas não no sentido da “página branca” do último plano da Garbo na Queen Christina ou no sentido de qualquer efeito de Kulechov. Bergman não lhe pediu o vazio como Mamoulian pediu à Garbo, nem conseguiu essa cara por efeito de montagem. O que aconteceu foi uma total absorção da luz e da sombra, como antes só víramos em Marlene filmada por Sternberg. Com a capital diferença da evidência da actriz. Será por isso que outro dos pontos culminantes da arte dela (deles) se chama Face to Face?

Mas esta mulher falou. E falou de que maneira, na Sonata de Outono, esmagando pela palavra (aquela noite das duas!) a actriz da palavra que foi Ingrid Bergman. Nunca – que me lembre – duas actrizes tão geniais se enfretaram assim e o momento supremo da sua luta de morte (luta de mãe e filha) é expresso no momento em que Liv Ullmann se decide a falar. E uma noite inteira falou por tudo e todos quanto se haviam calado.
E aquele grito (preferem uivo?) que soltou na noite em que Erland Josephson a abandonou nas Cenas da Vida Conjugal, quando descobre que toda a gente – menos ela –sabia que o marido tinha outra mulher? E a sua ânsia de ser tocada, de amor físico, nas Lágrimas e Suspiros, em que precisamente não é capaz de tocar no único corpo que lho pediu, no corpo da irmã morta? E o seu vaguear, na Hora do Lobo? E as noites dela com Max Von Sydow na ilha da Paixão?
Penso em todos esses filmes e o meu amor por esta mulher – a mais bela, a mais absoluta das mulheres de Bergman – não tem dimensão. (...)

Mulher, actriz, cinema – palavras tão simples, mistérios tão grandes: Liv Ullmann.
Mais simples, mais misterioso, é o amor. E só talvez ele explique que a “melhor mulher” só o tenha sido com Bergman. Longe dele – em tantos e tão penosos filmes – todo o mistério desapareceu. Ficou, quando muito, uma bonita imagem. Mais nada, mais nada. Borboleta da noite, viveu em torno de uma única luz. Fora dela, não existiu. Dentro dela, foi – de longe, de longe – a maior dos últimos vinte anos. (...)

Mas não tenho esse talento. Por isso aqui fica o texto, com uma vénia de homenagem. É de João Bénard da Costa e foi publicado em 1987 no catálogo do ciclo de cinema Actor/Actor.

2 comments:

joana pais de brito said...

boa ideia te-lo posto aqui, é mesmo cativante...

Anonymous said...

Estou incandescente e sem fôlego e só vou a meio do incandescente artigo sobre Liv Ullmann. Mas quero já dizê-lo !