Sunday 17 December 2006

A fé perdida de Michaela Klingler

Desde há uns anos que se começa de novo a falar do cinema alemão. Se há renascimento (ainda estamos para ver), é menos estrondoso do que o que conheceu nos anos 60/70, e ainda não há nomes que se equiparem a Fassbinder, Herzog ou Wenders. Alguns êxitos mundiais (Goodbye Lenin) ou polémicas ruidosas (Der Untergang/A Queda) não chegam para definir uma tendência, mas, pouco a pouco, chegam-nos sinais de que há algo de novo que fala alemão. Não são obras-primas, não têm sucesso garantido (apesar de alguns prémios em Berlim, mas isso é jogar em casa), não formam nenhuma corrente, dada a sua diversidade formal e temática, mas mexem. Unterwegs de Jan Krüger, que passou quase despercebido em 2004, era um primeiro filme muito promissor. Em jeito de road movie, contava a história de um jovem estranho e perturbante que se insinua no seio de um casal e que os leva a embarcar em aventuras pouco claras e algo ameaçadoras. De feitura mais clássica, Sophie Scholl - Die letzten Tage de Marc Rothemund superava com êxito a aposta de contar os últimos dias (prisão, processo e execução) da vida da jovem opositora ao regime nazi, concentrando a trama no fascínio que se exercem mutuamente Sophie e o principal investigador do processo.

Requiem constitui o último sinal que me chega desta tranquila movida alemã. O realizador, Hans-Christian Schmid, já tinha dado que falar com o seu filme anterior, Lichter (que não vi). Em Requiem, conta a história (baseada em factos reais) de Michaela Klingler, uma jovem estudante de 21 anos, oriunda de uma família profundamente católica e que sofre de perturbações que podem ser epilepsia, esquizofrenia, ou mesmo possessão (o filme, apesar do tratamento realista, atento aos detalhes quotidianos, evitando reviravoltas dramáticas e nunca embelezando a crueza das imagens nem recorrendo a efeitos especiais, deixa as várias soluções em aberto). Apesar da saúde frágil, deixa a casa familiar (e a tensa relação com a mãe) para prosseguir os estudos na universidade, onde reata uma amizade de infância e arranja um namorado. A doença volta a manifestar-se e os delicados alicerces da sua nova vida vacilam. Psicologicamente abalada, apesar de se colocar sob a protecção de Santa Catarina, Michaela julga-se possuída por demónios, recusa o tratamento médico, submete-se a várias tentativas de exorcismo e acaba por sucumbir por exaustão e falta de cuidados. Um mérito, e não pequeno, do filme é abordar um tema como o do exorcismo pelo prisma do realismo (não podia estar mais longe do género do terror de outros exemplos conhecidos de casos de possessão como O Exorcista), dada a opção do autor por nunca abandonar a personagem, que está presente em todas as cenas, embora a filme de um ponto de vista exterior, supostamente "objectivo" (o que quer dizer que a vemos nas suas crises mas a câmara mantém uma certa distância pudica, a vemos a ter visões mas não vemos as suas visões nem ouvimos as vozes que ouve), descritivo, quase clínico.
Não sendo uma obra-prima, o filme é forte e comovente, no retrato que faz de uma jovem em busca de si própria, arcando com o peso de uma fé familiar demasiado envolvente, lutando por uma sexualidade desculpabilizada. E não seria o que é sem Sandra Hüller, jovem actriz de teatro no seu primeiro papel para o cinema, numa interpretação fenomenal, contida, mas capaz de recorrer a uma paleta de emoções invulgar. Não possuindo uma educação particularmente religiosa (ao contrário do realizador, que provém de um meio católico conservador), a actriz preparou-se não só tecnicamente (por exemplo, como rezar com um rosário na mão, como simular uma crise de epilepsia), mas também mergulhando em livros sobre a epilepsia e as psicoses e descrições de pessoas que conheceram Anneliese Michel (a personagem real sobre a qual se baseia o filme). E recorrendo à imaginação. E ao talento, que é muito. Entre muitos outros prémios, Sandra Hüller obteve um Urso de Prata no último Festival de Berlim.

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