Sunday 26 November 2006

Les Quatre Anglaises et le Continent

O continente sou eu nesta imaginária atribuição a mim próprio do papel de Jean-Pierre Léaud hesitando no amor por duas irmãs no belo filme de Truffaut Les deux anglaises et le continent. Na minha juventude, as inglesas da minha hesitação e devoção não foram duas, mas quatro.

E para o caso não é puramente inocente a invocação trufaldiana. É dele a célebre boutade de que cinema e inglês são dois termos incompatíveis: o cinema britânico sempre se caracterizou pela grandeza dos seus actores e pela pequenez dos seus filmes, curioso num país conhecido pela sua tradição teatral, mas cujo peso esmagador pode estar na origem da dificuldade do cinema em ganhar asas. Rios de tinta têm sido gastos em procurar possíveis explicações para o facto e uma delas, não pequena, será a força centrípta do cinema americano, que tem sistematicamente drenado os talentos que surgem nas ilhas, impedindo assim a continuidade da qualidade média de uma produção privada dos seus melhores artistas.

O viveiro de talentos que é o teatro britânico produz actores a cuja grandeza o cinema quase nunca tem sabido fazer o devido jus. Desafio quem quer que seja a apontar uma mão cheia de filmes ingleses de John Gielgud, Laurence Olivier ou Michael Redgrave que valha a pena voltar a ver sem ser pelas suas interpretações. Isto só para falar dos maiores, mais célebres e de carreira mais duradoura.

No início dos anos 60, a nouvelle vague francesa que limpou o pó do cinema clássico alastrou-se e renovou as cinematografias nacionais um pouco por toda a Europa e Mundo. O cinema inglês teve também a sua new wave, em que novos realizadores (vindos frequentemente do documentário, como Tony Richardson, John Schlesinger ou Lindsay Anderson), novos escritores ou dramaturgos convertidos em screenwriters (Alan Sillitoe, David Storey, Harold Pinter) e um punhado de novos actores (Albert Finney, Tom Courtenay, Richard Harris) procuraram abanar um cinema cristalizado nas adaptações teatrais, nas comédias tontas e na exploração estéril do classy british touch, trazendo-o do salão para a cozinha, aproximando-o das pessoas normais e dos temas quotidianos. A classe operária e a emergente swinging London entravam em cena. O cinema inglês parecia finalmente ter encontrado o seu lugar. O êxito do free cinema foi enorme (choveram óscares, prémios em Cannes) mas, ao contrário da nouvelle vague francesa, foi estéril e breve (no final da década pouco restava daquela lufada de ar fresco, que fôra mais aparente do que real – a verdade é que são poucos os filmes dessa época que sobreviveram bem, e grande parte dos realizadores foi absorvida pela máquina americana sem grande história ou desapareceu sem deixar rasto).

Ficaram os actores e as actrizes, enormes alguns, uma vez mais movendo-se com dificuldade em filmes que se comportam frequentemente como coletes de forças para os seus talentos. E é aqui que entram as minhas quatre anglaises. Que ficaram na minha memória muitas vezes apesar dos filmes que fizeram.

A primeira a entrar no meu panteão pessoal foi a última das quatro a chegar à celebridade internacional (sim, porque as minhas quatro magníficas inglesas são ou foram, para além de enormes actrizes, das mais célebres do mundo, que em conjunto somam 6 óscares, 19 nomeações, 2 prémios em Cannes e 2 em San Sebastian), onde reinou sem contestação durante algum tempo (primeira metade dos anos 70) como a maior actriz de língua inglesa, tendo-se depois progressivamente eclipsado, acabando por abandonar o cinema nos anos 80 para se dedicar exclusivamente à política: falo de Glenda Jackson. Já célebre no teatro quando chega ao cinema (pela mão de Peter Brook em 1967), esta filha de operários com uma total falta de glamour (na linha das actrizes lançadas uns anos antes pelo free cinema como Rachel Roberts ou Rita Tushimgham) triunfa internacionalmente em 1969 com Women in Love, adaptação relativamente fiel do romance de D.H. Lawrence por Ken Russell. Se o filme deu brado na época pela crueza dos sentimentos retratados e pelas cenas de nu masculino, hoje dificilmente sobrevive e Ken Russell confirmaria a seguir que é um dos piores realizadores do mundo. Mas Jackson continuou nos filmes seguintes a explorar a vulgaridade do seu físico, a voz quente e relativamente grave e um underplaying a roçar a invisibilidade. Faz para a televisão a Elisabeth I definitiva, com quem ainda hoje se medem as actrizes que ousam voltar a interpretar esse papel, repete o papel no cinema, em Mary, Queen of Scots, num ombro a ombro falhado com Vanessa Redgrave (já na época me esforcei imenso por gostar desse filme, que reunia as minhas actrizes favoritas, sem nenhum sucesso, dada a sua mediocridade) e é muito boa em Sunday, Bloody Sunday (John Schlesinger, 1971), de novo um filme ousado e “adulto”, em que partilha o amante Murray Head com o médico Peter Finch, mas que hoje, atenuado o escândalo do tema, se vê mais como uma curiosidade. Tem imenso êxito no registo de comédia no insípido e mediocríssimo A Touch of Class (segundo óscar), mas progressivamente a escolha de filmes e de realizadores fazem-na cair no esquecimento. O que eu gostava dela, daqueles olhos que se fechavam quando sorria tristemente, daquela boca entreaberta tão expressiva, daquele andar rígido, deselegante e tão normal! De cada vez que havia um novo filme da Glenda Jackson lá estava eu caído, preparado para gostar muito, e sempre, sempre desapontado. Mesmo quando trabalhou com bons realizadores (Losey, Altman), foi em filmes menoríssimos desses autores. A sua carreira, relativamente breve, foi um caso quase limite de misterioso desperdício de talento. Porque diabo nunca fez nenhum filme que não valha a pena ser visto sem ser por ela?
Se Glenda Jackson, apesar da fama que veio a adquirir no cinema, parece ter sido sempre uma outsider no meio teatral inglês, quer devido à proveniência social, quer devido à formação não convencional, já não é o caso das minha inglesas seguintes: Vanessa Redgrave e Maggie Smith fazem parte daquilo que se poderia designar por aristocracia do teatro inglês. Vanessa pertence a uma das mais famosas e importantes “dinastias” de actores; muito cedo pisa os palcos, interpretando desde Shakespeare a Tchekov (tive o privilégio de a ver em Londres no início dos anos 90 numa célebre encenação das Três Irmãs que a reuniu à irmã Lynn e a uma sobrinha, Jemma), sendo rapidamente tentada pelo cinema, onde sempre conciliou o mainstream melhor (The Bostonians de James Ivory, 1984) ou pior (Julia de Fred Zinnemann, 1977) e filmes de autor (mais raramente - um dos seus primeiros papéis relevantes foi no Blowup de Antonioni, 1966), sendo a sua presença sempre marcante. Aliás, a diferença entre a sua carreira e a de Glenda, para além da longevidade e de uma óbvia escolha menos desastrada de filmes, é que o talento de Vanessa não só sobrevive a filmes à partida menores, como os consegue frequentemente elevar a níveis impensados. Para mim, Vanessa foi durante muitos anos Isadora, uma interpretação extraordinária num biopic relativamente impessoal da célebre bailarina Isadora Duncan realizado em 1968 por Karel Reisz, um dos nomes do free cinema, com quem Vanessa havia já trabalhado (Morgan, 1966). A actriz, em estado de graça, apodera-se da personagem, que visivelmente lhe diz muito, tanto na sua abordagem inovadora da arte como na forma não convencional como encara o amor e o sexo, e galvaniza a energia de um filme que de outro modo não teria qualquer interesse. As suas interpretações de Nina em The Seagull (Tchekov filmado por Sidney Lumet, 1968) ou de Andrómaca em The Trojan Women (Eurípedes por Cacoyannis, 1971) valem os filmes e, tal como em Isadora, mais recentemente The Ballad of the Sad Café (Carson McCullers vista por Simon Callow, 1991) não seria o que é se não tivesse a inteligência e a genialidade de Vanessa.
A proximidade do tipo físico e da idade tornaram as carreiras de Vanessa Redgrave e de Maggie Smith quase intercambiáveis. As actrizes, aliás, tanto no teatro como no cinema, beneficiaram frequentemente de desistências mútuas para obterem papéis. Foi assim, por exemplo, que Maggie Smith, após uma carreira teatral que havia começado pela mão de Laurence Olivier no final dos anos 50, e alguns filmes onde é notável (The Honey Pot de Joseph L. Mankiewicz, 1967) mas onde pouca gente a viu, conseguiu o triunfo (óscar e tudo) na passagem para o cinema da peça (adaptada do romance de Muriel Spark) The Prime of Miss Jean Brodie (Ronald Neame, 1969), recusada por Vanessa (a viver o seu romance com Franco Nero) que a havia interpretado nos palcos. Igualmente esquálida e alta, mas menos bonita do que Vanessa, Maggie Smith adaptava-se não só aos papéis de solteirona frustrada ou dissoluta, como se viria a revelar igualmente à vontade em papéis cómicos (os pequenos de hoje divertem-se muito com ela no Harry Potter). Os americanos perceberam bem e foi divertidíssima no último grande Cukor (Travels with My Aunt, 1972). Apesar de ter trabalhado com Ivory (A Room with a View, 1985) ou com o Altman inglês (Gosford Park, 2001), é outro belo exemplo da pequenez do cinema britânico, que não sabe o que fazer com os grandes talentos.



Julie Christie é a última do quarteto e é um caso à parte. Lançada directamente pela vaga do free cinema (Billy Liar de John Schlesinger, 1963), foi a primeira a atingir o estrelato mundial (óscar em 1965 e Doctor Zhivago a ajudarem); nada ligada ao teatro, onde parece sentir-se desconfortável, tem tido uma carreira cinematográfica errática, com momentos muito altos, muitos ausentes (ocupada com Warren Beatty ou com a defesa dos animais), e alguns baixos; linda de morrer, dela diz Al Pacino que é the most poetic of all actresses. Foi a última das minhas quatre anglaises, chegou já laureada, mas curiosamente a sua reputação decorria mais do azul dos olhos e do sexy queixo protuberante do que das qualidades de representação. Foi assim que a vi em The Go-Between (Joseph Losey, 1971) onde não resistia à visão do corpo nu de Alan Bates, a rebentar de sensualidade por entre o apertado do corpete. Apesar de ter começado a sua carreira simbolizando a inglesa moderna, durante algum tempo quiseram pô-la a representar clássicos e, mais tarde, comédias, registos para os quais não estava visivelmente vocacionada. Três papéis, porém (que descobri ao longo dos anos, cronologicamente desordenados), revelaram-me quão grande actriz é, das minhas quatre anglaises talvez a mais puramente cinematográfica, a mais bela, a mais comovente, a mais poética: McCabe and Mrs. Miller (Robert Altman, 1971), em que dá uma inesperada dignidade a uma prostituta opiómana lutando para sobreviver numa cidadezinha do Oeste; Afterglow (Alan Rudolph, 1997), representando uma actriz de filmes B retirada, a quem um romance com um tipo mais novo vem iluminar de novo um sorriso há muito extinto; e, descoberta minha recente, Petulia (Richard Lester, 1968), um dos grandes filmes dos anos 60, em que faz um retrato comovente de uma mulher em luta para transcender a sua própria frivolidade. E quem a viu em Tétis, a mãe de Aquiles, numa breve aparição no recente Troy, sabe que Al Pacino e eu temos razão.

No comments: