Friday 17 November 2006

Xiao cheng zhi chun (2002)

Após dez anos de ausência, o desejado regresso de Tian Zhuangzhuang ao cinema (depois de três anos de castigo e muitos outros de inactividade auto-imposta na sequência da proibição de The Blue Kite, 1993) foi ousado: um remake do clássico Xiao cheng zhi chun (Spring in a Small Town) de Fei Mu. A versão de 2002 aparenta algo de já visto no cinema chinês recente: uma história madura, subtil, imaculadamente realizada, de paixões mal sublimadas, oculta numa belíssima e elegante concha (lembremo-nos de Flowers of Shanghai de Hou Hsiao-hsien ou de In the Mood for Love de Wong Kar-wai).

Comparando ambas as versões, J. Hoberman (crítico do Village Voice), indo contra a corrente estabelecida que desvaloriza Springtime in a Small Town (2002) relativamente ao original, refere muito justamente que a versão de 48 é mais estranha, sombria, rígida, claustrofóbica e menos subtil do que o remake, que, de forma muito interessante, oferece a refracção de um drama contemporâneo rígido através do prisma de uma dupla nostalgia (o contemporâneo hoje → o contemporâneo da acção → o passado dos protagonistas). A atmosfera do primeiro filme estaria mais próxima de Strindberg, enquanto a do segundo evocaria Tchekhov.
A história é praticamente idêntica nos dois filmes. Tian socorre-se de um elenco mais jovem do que o de Fei e torna explícito que a impotência de Liyan é psicossomática. De resto, o remake preserva os planos longos e cuidadosamente concebidos, a atmosfera obsessivamente sombria e a tensão subtilmente crescente do original. Existem, contudo diferenças importantes. Tian abandona a característica mais inovadora da versão de Fei Mu – o recurso claramente moderno à voz off da frustrada heroína, uma corrente de consciência sussurrante que complica e dá um toque poético a tudo o que acontece. O filme de 2002 substitui essa modernidade subversiva por uma linguagem cinematográfica tradicional, quase clássica. Uma câmara extremamente móvel (que no original se limitava à cena da festa) dá a sensação de tudo ver. Tian converte um comentário radical sobre o colapso da China numa celebração nostálgica de um passado quase perfeito. Mas ao mesmo tempo, o novo filme pode ser lido como uma intervenção activa, urgente, num dilema político chinês contemporâneo. A um nível temático e simbólico, pode ser visto como o levantamento de um processo à ruptura violenta na cultura chinesa representada pelo fosso que a Libertação (1949) e a Revolução Cultural (1966-1976) abriram entre a cultura chinesa contemporânea e a tradição, e a proposta do respectivo tratamento. Springtime in a Small Town parece abraçar o projecto de reunir o presente ao passado ao estabelecer pontes, curar feridas. O filme é marcado por rupturas de vários tipos: o abismo na história original entre a China do pré e do pós-guerra, o vasto espaço emocional entre cada personagem antes e depois da guerra, as ruínas das muralhas da cidade, que só no fim do filme são vistas como permeáveis. E em termos autobiográficos (se não é ir longe demais), Springtime marca o fim da pausa na própria carreira interrompida de Tian Zhuangzhuang. O projecto cultural do filme praticamente obriga-o a abjurar os gestos de vanguarda do original, em favor de um estilo classicizante consciente que sublinha uma continuidade com a anterior cultura cinematográfica chinesa. O objectivo de Tian pode ser interpretado como retrospectivamente radical: mostrar como colmatar a ruptura entre o passado tradicional da China e o seu presente pós-revolucionário.

Tian Zhuangzhuang
Nasceu em Beijing em 1954. Tanto o pai, Tian Fang, como a mãe, Yu Lan, foram actores célebres do cinema chinês. Com 14 anos, corria já a "Revolução Cultural", Tian foi mandado "aprender com o povo", indo trabalhar para o campo na Província de Jilin (anteriormente parte da Manchúria). Em vez de aí passar o resto da vida, alistou-se no exército, estudando depois no departamento de fotografia da "unidade do filme agrícola", onde trabalhou numa série de filmes educativos e documentários.
Em 1978, obteve um lugar no departamento de realização da Academia do Filme de Beijing, a escola de cinema da China. Durante o curso, co-realizou o vídeo Women de jiao luo (Our Song), internacionalmente considerado como o sinal inicial do novo espírito do cinema chinês. Acabou o curso em 1982 – membro do grupo posteriormente conhecido por "quinta geração" – por serem a quinta "fornada" a concluir o curso no departamento de realização. O grupo incluía igualmente Chen Kaige (Yellow Earth), Wu Ziniu e Hu Mei. Embora dependente dos Estúdios de Beijing, Tian trabalhou por toda a China como freelance. Fez um filme para a TV, depois co-realizou outro para crianças, com dois colegas da "quinta geração". O seu primeiro filme a solo foi o melodrama Jiuyue (In September), feito para os Estúdios de Kunming. O segundo foi Lie chang zha sha (On the Hunting Ground, 1984), uma "ficção documental" feita para os Estúdios da Mongólia Interior. Dao ma zei (The Horse Thief, 1986) é o seu terceiro filme. Com o filme seguinte, Gushu Yiren (The Street Players, 1987) começaram os seus problemas com a censura, que viriam a culminar alguns anos depois, em 1993, com a controvérsia causada pelo filme Lan feng zheng (The Blue Kite), que foi interdito e valeu ao realizador uma proibição de trabalhar por três anos. Só em 2002 regressou ao cinema, em grande forma, assinando Springtime in a Small Town. Quatro anos depois está de volta, tendo apresentado The Go Master no festival de NY e no novel festival de Roma, com excelentes críticas.
(biografia adaptada do catálogo "Ciclo de Cinema Chinês" da Cinemateca Portuguesa)

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