Friday 17 November 2006

Xiao cheng zhi chun (1948)

Num ano que parece já poder considerar-se como outro ano importante na produção de filmes chineses (como, recentemente, o ano 2000 - com a estreia de filmes tão variados e representativos das várias tendências e pólos de produção do mundo chinês como Yi Yi, In the Mood for Love, Platform ou Crouching Tiger, Hidden Dragon -, e antes 1998, ou 1996, ou 1993...), com um prémio em Veneza para Still Life de Jia Zhang-ke, a estreia prevista das superproduções The Banquet de Feng Xiaogang (vagamente inspirado no Hamlet) e Curse of the Golden Flower de Zhang Yimou (a encerrar a sua triologia de artes marciais) e a passagem em Cannes de Summer Palace de Lou Ye (e as autoridades chinesas a torcer o nariz), o novo filme de Tian Zhuangzhuang, um dos maiores realizadores chineses vivos, The Go Master, é um bom pretexto para revisitarmos o seu filme anterior, Springtime in a Small Town, de 2002, bem como o clássico de Fei Mu de 1948, de que é um remake (embora com o mesmo título original - Xiao cheng zhi chun -, o título internacional estabelece uma pequena diferença: Spring in a Small Town).


Produzido em 1948 (o ano anterior à chegada ao poder dos comunistas na China), Spring in a Small Town é um retrato lírico da intensa rivalidade psicológica entre dois amigos pelo amor de uma mulher. Dirigido por Fei Mu e baseado numa história de Li Tianji, o filme relata a rede de emoções criada entre quatro pessoas, transmitindo um intenso e perturbante erotismo. Dai Liyan (Shi Yu) e a mulher Zhou Yuwen (uma interpretação notável de Wei Wei) vivem na velha casa de família com a jovem Dai Xiu (Zhang Hongmei), irmã de Liyan, e a criada da família Lao Huang (Cui Chaoming). Devido ao estado de Liyan (tuberculoso, neurasténico, à beira do suicídio), o casal dorme em quartos separados. Yuwen, é uma esposa leal e devotada, mas já abandonou a ideia de ter filhos e leva uma vida entediante, ocupando o tempo a bordar ou a dar passeios solitários pelas ruínas das muralhas da cidade.

Quando Zhang Zhichen (Li Wei), amigo de infância de Liyan, agora médico, chega de Shanghai, trazendo consigo uma lufada de cosmopolitismo e um escape para antigas paixões e ressentimentos reprimidos, ficamos a saber que Yuwen havia sido sua namorada dez anos antes. A tensão torna-se cada vez mais evidente à medida que cada personagem se vê obrigada a ocultar a sua verdadeira natureza e os sentimentos são expressos unicamente através de olhares, gestos e silêncios. A chegada de Zhichen vem trazer uma chama de vida à atmosfera moribunda da casa e, pouco depois, a atmosfera torna-se mais ligeira, com passeios, canções e jogos. A relação entre Yuwen e Zhichen reacende-se pouco a pouco, tornando‑se aparente na festa de aniversário de Xiu, em que ambos bebem mais do que a conta. Após uma discussão com Zhichen, Yuwen corta-se com um vidro e a partir daí os acontecimentos precipitam-se, acabando por afectar a vida de todas as personagens.

Ao descrever os acontecimentos do ponto de vista de Yuwen e adicionando uma voz off poética, o filme aproxima-nos das personagens. A sensação de frustração e irritação é palpável, sublinhada pela brilhante ideia de Fei de utilizar fusões encadeando as cenas, mas a contra-corrente do desejo que renasce imprime uma grande sensualidade ao filme.

Esta obra única (frequentemente citada entre os melhores filmes chineses de sempre, mas raramente vista hoje – eu tive o privilégio de a ver no ciclo de cinema chinês organizado pela Cinemateca Portuguesa em 1987) reflecte e disseca a sensação de impotência que se apropriou de muitos chineses nos anos imediatamente a seguir à guerra.

Os comentadores comunistas criticaram a timidez ideológica de Fei, bem como o efeito narcótico do filme, não percebendo a dolorosa ironia do título nem como este filme capta de forma tão perfeita o momento em que foi feito.

Fei Mu (1906-1951)
Estreia-se como crítico de cinema (co-edita, como o seu amigo Zhu Shilin, a revista "Hollywood"). Começa a partir de 1933 uma carreira de realizador com Cheng shi zhi ye (City's Night), cuja vedeta é a bela Ruan Lingyu, que interpreta também o seu filme seguinte, Ren sheng (Life, 1934). Realiza em seguida Xiang xue hai (Sea of Perfumed Snow, 1934), de que assina também o argumento e Tianlun (Filial Piety, 1935), em colaboração com Luo Minyou. Em 1936, pouco antes da declaração de guerra, realiza um filme que ataca indirectamente os japoneses: Lang shan die xie ji (Blood in the Wolf Hill). Em 1937, realiza Zhan jing tang (Murder in the Oratory), uma ópera interpretada pelo célebre Zhou Xinfang, e Qian tai he hou tai (On Stage and Backstage), uma curta-metragem sobre a vida dos actores de ópera, que roda em simultâneo com o filme anterior e depois, ainda no mesmo ano, Du jin de cheng (Golden City) e Bei zhan chang jing zhong lu (Martyrs on the Northern Front), uma mescla de actualidades e ficção. Durante o período da "ilha órfã" (período da guerra sino-japonesa de 37 a 41, antes da ocupação total de Shanghai), escreve e realiza ainda quatro filmes: Kong Fuzi (Confucius, 1940), Shi jie er nu (Children of the World), em colaboração com os exilados alemães Jakob e Louise Fleck, Gu zhong guo zhi ge (The Song of Ancient China, 1941), uma selecção de oito extractos de óperas e, por fim, Hong xuan jiao (1941).
Quando os japoneses assumem o controlo dos estúdios de Shanghai em 1942, recusa colaborar. Em 1948 realiza o primeiro filme chinês a cores, Sheng si hen (Happiness Neither in Life Nor in Death), ópera de Beijing interpretada pelo grande actor Mei Lanfang e Xiao cheng zhi chun (Spring in a Small Town), a sua obra-prima. Em 1950 começa a rodar, em Hong Kong, Jiang hu er nu (Sons of the Earth, 1951), mas morre em Janeiro de 1951, sendo o filme terminado por Zhu Shilin.
(biografia adaptada do catálogo "Ciclo de Cinema Chinês" da Cinemateca Portuguesa)

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