Friday 5 January 2007

Cannes Vs. Veneza


Quis o acaso da distribuição da cidade onde vivo que visse no mesmo fim de semana os filmes que obtiveram os prémios de realização nos últimos festivais de Cannes e de Veneza, respectivamente Babel de Alejandro González Iñárritu e Coeurs de Alain Resnais. À parte esse acaso, e a coincidência dos prémios de realização, não encontro muito mais que possa aproximar esses filmes. Isso apesar da estrutura de mosaico ou coral de ambos, com histórias múltiplas, desenvolvendo-se paralelamente, que se entrecruzam e cuja relação vai sendo cada vez mais aparente. O tom de Babel é grave e o programa dos seus autores (González e o escritor Guillermo Arriaga) visa alto, muito alto mesmo: nada menos do que o estado da civilização, num mundo globalizado, desumanizado, sem lugar para o indivíduo nem para a diferença, onde a facilidade da comunicação global parece ter inviabilizado o contacto directo, as relações pessoais, a compreenção entre os indivíduos, em suma. Ou como uma arma oferecida por um caçador japonês a um guia marroquino vai provocar a expulsão de uma imigrante mexicana clandestina nos EUA. O problema do filme é que parece feito para provar uma tese, ninguém parecendo acreditar na inverosímil trama nem preocupar-se muito em dar três dimensões às personagens, ocupados que estão em sublinhar o óbvio, em inchar a "mensagem", em facilitar a compreensão de uma estrutura aparentemente complexa mas, no fundo, só artificialmente complicada. O surpreendente é que Babel tem sido apresentado como inovador, quando já é a terceira colaboração entre realizador e argumentista (que antes assinaram Amores perros e 21 Grams), mantendo a mesma estrutura multifacetada que nos filmes anteriores, o mesmo pendor para a auto-importância e para o sublinhado, embora no caso em apreço a almejada dimensão sinfónica lhe tenha sido fatal. Sempre houve filmes como este, filmes com mensagem, bons sentimentos e "de qualidade", a que um certo público ilustrado adere porque julga embarcar numa aventura intelectual e artística, quando afinal embarcou num paquete de luxo para um cruzeiro em águas paradas. Costumavam ter óscares e ser assinados por Fred Zinnemann e Costa-Gavras.

Já filmes como Coeurs são mais raros. Baseado numa peça de teatro inglesa (Private Fears in Public Places de Alan Ayckbourn) adaptada ao XIIIe arrondissement de Paris actual, onde as arquitecturas de vidro e metal são ilusões de transparência, o filme é assinado por um senhor de cabelos brancos como a neve que cai sem parar, por todo o lado, por vezes mesmo na cozinha de um apartamento, um dos mais velhos realizadores em actividade (84 anos), Alain Resnais. De quem são esses corações que batem nesse Inverno? De Charlotte, solteirona beata. De Thierry, tão fané como ela, seu colega de escritório numa agência imobiliária. De Gaëlle, irmã jovem e bonita de Thierry. De Dan, militar no desemprego. De Nicole, sua mulher, que está pelos cabelos. De Lionel, barman de noite num hotel moderno. E de Arthur, o moribundo. Um pouco disto e daquilo, irmãos, irmãs, velhos, jovens, homens e mulheres, que se compõem e decompõem, ou se extenuam nas redundâncias da conjugalidade. Mais au bout du compte, on se rend compte qu'on est toujours tout seul au monde. Refrão implícito do filme, mas seguramente não a sua moral. Há, de facto, nesta obra aparentemente fúnebre, uma estranha alegria, um curioso optimismo, um apelo à fraternidade. E uma das suas não pequenas qualidades é que Resnais ama estas pequenas personagens, cómicas mas nunca grotescas, comoventes sem serem embaraçantes. E ama-as como um cineasta, ou seja, com um grande afecto pelos actores. Os antigos, seus filhos (Sabine Azéma, André Dussolier, Pierre Arditi), fiéis e perfeitos. Mas também o sobrinho (Lambert Wilson), cada vez mais da família ao longo dos filmes. E as novas pequenas (Laura Morante, Isabelle Carré), mais do que bem-vindas ao círculo. Na sua aparente ligeireza, total ausência de pretensão e inexcedível mestria formal, Coeurs é um divertissement que diz mais acerca do estado da civilização contemporânea, desta torre de Babel que ajudámos a construir e em que vivemos, do que muitos babéis juntos.

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